segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

41.

O silêncio que sai do som da chuva espalha-se, num crescendo de monotomia cinzenta, pela rua estreita que fito. Estou dormindo desperto, de pé contra a vidraça, a que me encosto como a tudo. Procuro em mim que sensações são as que tenho perante este cair esfiado de água sombriamente luminosa que [se] destaca das fachadas sujas e, ainda mais, das janelas abertas. E não sei o que sinto, não sei o que quero sentir, naõ sei o que penso nem o que sou.

Toda a amargura retardada da minha vida despe, aos meus olhos sem sensação, o traje da alegria natural que usa nos acasos prolongados de todos os dias. Verifico que, tantas vezes alegre, tantas vezes contente, estou sempre triste. E o que em mim verifica isto está por detrás de mim, como se debruça sobre o meu encostado à janela, e, por sobre os meus ombros até a minha cabeça, fita, com olhos mais íntimos que os meus, a chuva lenta, um pouco ondulada já, que filigrana de momento o ar parto e mau.

Abandonar todos os deveres, ainda os que nos não exigem, repudiar todos os lares, ainda os que não foram nossos, viver do impreciso e do vestígio, entre grandes púrpuras de loucura, e rendas falsas de majestades sonhadas... Ser qualquer coisa que não sinta o pesar de chuva externa, nem a mágoa sa vacuidade íntima... Errar sem alma nem pensamento, sensação em si-mesma, por estrada contornando montanhas, por vales sumidos entre costas íngremes, longínquo, imerso e fatal... Perder-se entre paisagens como quadros. Não-ser a longe e cores...

Um sopro leve de vento, que por detrás da janela não sinto, rasga em desnivelados aéreos a queda retilínia da chuva. Clareia qualquer parte do céu que não vejo. Noto-o porque, por detrás dos vidros meio-limpos da janela fronteira, já vejo vagamente o calendário na parede lá dentro, que até agora não via.

Esqueço. Não vejo, sem pensar.

Cessa a chuva, e dela fica, um momento, uma poalha de diamantes mínimos, como se, no alto, qualquer coisa como uma grande toalha se sacudisse azulmente esssas migalhinhas. Sente-se que parte do céu já está aberta. Vês-e, através da janela fronteira, o calendário mais nitidamente. Tem uma cara de mulher e o resto é fácil porque o reconheço, e a pasta dentífrica é a mais conhecida de todas.

Mas em que pensava eu antes de me perder a ver? Não sei. Vontade? Esforço? Vida? Com um grande avanço de luz sente-se que o céu é quase todo azul. Mas não há sossego - ah, nem o haverá nunca! - no fundo do meu coração, poço velho ao fim da quinta vendida, memória de infância fechada a pó no sótão da casa alheia. Não há sossego - e ai de mim!, nem sequer há desejo de o ter....

Fernando Pessoa. Livro do Desassossego (p. 72-73)


Polidoro, o meu desassossego não está sozinho em um dia chuvoso....

Nenhum comentário: