quinta-feira, 27 de maio de 2010

segunda-feira, 17 de maio de 2010

Adiamento


      "Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã...
      Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã,
      E assim será possível; mas hoje não...
      Não, hoje nada; hoje não posso.
      A persistência confusa da minha subjetividade objetiva,
      O sono da minha vida real, intercalado,
      O cansaço antecipado e infinito,
      Um cansaço de mundos para apanhar um elétrico...
      Esta espécie de alma...
      Só depois de amanhã...
      Hoje quero preparar-me,
      Quero preparar-rne para pensar amanhã no dia seguinte...
      Ele é que é decisivo.
      Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos...
      Amanhã é o dia dos planos.
      Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o mundo;
      Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã...
      Tenho vontade de chorar,
      Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro...

      Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo.
      Só depois de amanhã...
      Quando era criança o circo de domingo divertia-rne toda a semana.
      Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana da minha infância...
      Depois de amanhã serei outro,
      A minha vida triunfar-se-á,
      Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e prático
      Serão convocadas por um edital...
      Mas por um edital de amanhã...
      Hoje quero dormir, redigirei amanhã...
      Por hoje, qual é o espetáculo que me repetiria a infância?
      Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã,
      Que depois de amanhã é que está bem o espetáculo...
      Antes, não...
      Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei. Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser.
      Só depois de amanhã...
      Tenho sono como o frio de um cão vadio.
      Tenho muito sono.
      Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã...
      Sim, talvez só depois de amanhã...

      O porvir...
      Sim, o porvir..."

        Álvaro de Campos - Fernando Pessoa

    sexta-feira, 14 de maio de 2010

    Demora

    Demorei a desfazer as minhas malas do passado
    A deixar de fazer das lembranças, melancolia
    Resistência firme à desistência

    Então, comprei passagens para o futuro
    Quis acelerar relógios e reger a minha própria sinfonia
    Demorei também a voltar desta estrada

    O presente agora é o meu porto
    Onde durmo manhãs inteiras
    Entediadas e demoradas tardes a fio

    E sou impedida de tantas coisas
    Que esta demora as vezes angustia
    Enquanto outros barcos dão certa esperança.

    Relativas.